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Sempre chove em outubro

Dia 06 – 26 de outubro de 1984

   

     Minhas pernas doem como nunca antes. Estimo ter caminhado cerca de 15 km desde o último povoado, onde parei para almoçar.

     No horizonte, por horas, observei a formação de uma nuvem espessa e escura — talvez a mesma que a previsão na TV vinha alertando nos últimos dias. Mesmo os mapas não indicando qualquer cidade nas redondezas, tive a sorte de topar com essa vila.

   

     É um lugar pequeno. As casas são baixas, e as árvores, tão antigas, curvam-se como se carregassem consigo o peso do tempo. Curiosamente, não vi seu nome em nenhuma placa — aliás, agora que penso, não lembro de ter visto placa alguma.

     

     A senhora da pousada parecia surpresa com minha chegada, mas foi cordial. Disse que raramente recebem visitantes, embora tivesse o quarto perfeito para mim. Nada muito grandioso: cama de madeira, um espelho torto na parede... Felizmente, porém, é tudo que eu preciso para agradecer por estar seco.

     

     Agora preciso comer algo e repousar. Amanhã, se Deus permitir, espero alcançar pelo menos a metade do estado.

​​

Dia 07 – 27 de outubro de 1984

     A chuva não deu trégua desde ontem à noite. Está intensa, constante. É impossível seguir viagem nessas condições, então precisei pagar por mais uma noite aqui.

     A senhora da pousada me atendeu novamente, mas havia algo diferente nela. Não foi rude, longe disso, mas havia em seu rosto uma expressão estranha — como se já soubesse que eu ficaria.

     Também não dormi tão bem essa madrugada. A cama é confortável, o clima até agradável, mas tive a impressão de ouvir vozes e movimentos sutis vindos além das paredes. Talvez fosse só a minha mente pregando peças, ou até mesmo o som da chuva se confundindo com outras coisas. O que quer que seja, confesso que me senti ligeiramente inquieto.

     Ainda é de tarde e não há indícios de que o tempo vá melhorar tão cedo. Talvez eu possa aproveitar o restante do dia para conhecer um pouco da cidade. Vi alguns guarda-chuvas na recepção — quem sabe a senhora não me emprestam um.

Dia 08 – 28 de outubro de 1984

     A chuva finalmente parou — mas agora estou ilhado nesta cidade.

     Ontem, saí para caminhar um pouco, na esperança de que algum morador pudesse me indicar uma rota alternativa que compensasse os dois dias — agora três — em que precisei descansar. Fiquei cerca de três horas fora da pousada. Almocei em um barzinho próximo à igreja matriz e aproveitei para conversar com alguns senhores que bebiam por lá.

     O povo daqui é surpreendentemente hospitaleiro. Todos se mostraram surpresos — alguns até duvidam — quando lhes contei sobre minha travessia a pé pelo Brasil. Não os culpo. Talvez eu também achasse improvável, anos atrás. Mas me preparei por muito tempo para essa jornada. Estou pronto. E vou cumprir essa promessa... Será por você, mamãe!

     A cidade em si é minúscula. Não cronometrei, mas creio que consigo atravessá-la de ponta a ponta em menos de dez minutos. É até curioso ter encontrado uma pousada aqui. Grande parte das construções parece congelada no tempo — uma arquitetura colonial que, tenho certeza, encantaria minha mãe. A vila está situada exatamente entre dois rios, e uma única estrada a conecta ao resto do mundo. Infelizmente, porém, a cheia a engoliu por completo. Não há como sair daqui por enquanto.

     Peço apenas que Deus me dê forças e sabedoria para seguir em frente. Ainda tenho um longo caminho adiante.

Dia 09 – 29 de outubro de 1984

     Este é meu quarto dia aqui — e começo a temer estar perdendo a sanidade.

     A senhora da recepção parece cada vez mais inquieta conforme o tempo passa. Hoje, percebi algo no olhar dela. Um certo desprezo contido, quase hostil. A impressão é de que me tolera apenas por obrigação — como se o simples fato de eu estar aqui fosse um incômodo pessoal, um favor.

     Gostaria de acreditar que é apenas uma semana ruim, algum problema que não me diz respeito, mas não é só ela. Não, as poucas pessoas com quem cruzei esta tarde demonstraram o mesmo incômodo — olhares que me atravessam como lâminas, julgando, pesando cada passo meu com uma arrogância sutil, porém sufocante.

     Quero sair daqui. Preciso sair daqui.

     E os sons… Eles voltaram. Parecem mais intensos agora. Ouço batuques abafados, arranhões persistentes, sussurros tão discretos que se tornam mais ensurdecedores que qualquer grito. Há algo de errado nestas paredes...

     Durante a madrugada, tive a sensação de que estava sendo vigiado. Não posso afirmar com certeza, mas acordei com a nítida imagem de uma silhueta humana passando diante da janela — de uma ponta à outra, como se me observasse. Estou tentando me convencer de que era apenas alguém passando pela rua. Custo a me convencer disso.

     Amanhã eu saio. Não importa se a estrada ainda estiver coberta d’água. Eu não passo mais uma noite neste lugar.

Dia 10 – 30 de outubro de 1984

     Não preguei os olhos.

     As vozes estão mais altas, mais nítidas, como se sussurrassem diretamente no meu ouvido. Não me sinto seguro nem mesmo para piscar — muito menos para dormir.

     Em qualquer lugar razoável do mundo, um vilarejo desse tamanho estaria mergulhado no silêncio às três da manhã. Mas aqui, não. Aqui as ruas ainda respiram. Elas espreitam.

     Iluminado apenas pela chama vacilante do meu isqueiro, escrevo enquanto duas crianças me observam do outro lado da rua. Estão paradas. Inertes. Com os olhos cravados na janela do meu quarto.

     O que elas querem comigo? Por que, em nome de Deus, estão acordadas a essa hora?

     Há passos sobre o teto. Passos pesados, erráticos, como se a coisa lá em cima não soubesse bem para onde ir. O que mais me assusta é que não há nenhum cômodo acima de mim...

     Eles andam. Voltam. Correm. Paralisam. Um som seco, de algo escorregando... Depois outro. E mais outro.

     Estou perdendo o juízo? Estou correndo perigo?

     E agora — claro — a chuva voltou. Grossa, sem aviso, batendo no telhado como dedos impacientes pedindo para entrar.

     Não sei o que está acontecendo aqui. Só sei que, se o amanhã vier, ele que venha rápido!

Dia 11 – 31 de outubro de 1984

     Eu não sei o que fazer. Não tenho a quem ligar. Não há ninguém a quem recorrer.

     É dez para uma da manhã. Faz quarenta minutos desde que uma mulher esmurrava a porta do meu quarto, aos gritos, em completo desespero. Ela implorava por ajuda. As palavras saíam truncadas, sufocadas por soluços, atropelando-se num fluxo tão frenético que parecia fugir do próprio pensamento. Deus sabe o que a trouxe até aqui nesse estado.

     Eu estava deitado, atento. O primeiro baque me fez rolar para o chão, coração disparado, suando frio. Levei tempo para entender o que estava acontecendo. Quando, enfim, criei coragem e abri a porta — já em completo silêncio — seu corpo desabou sobre o carpete.

     Ela estava nua. Coberta de sangue. Sangue por todo o corpo, por todo o chão — por minhas mãos agora. Não me atrevi a procurar ferimentos. Talvez por medo, talvez por respeito. Apenas joguei o cobertor sobre ela e a deitei na cama.

     Do outro lado da rua, agora, estão ali: uma mulher, três homens e uma criança. Todos parados, imóveis, encarando diretamente a janela do meu quarto.

     Os passos voltaram — e agora são muitos. Acima de mim, ao lado, talvez até dentro das paredes. Andam de um lado para o outro como se me cercassem por dentro. Como se o quarto fosse uma gaiola e eu, um animal acuado.

     Ontem tentei fugir. Cheguei à margem do rio, mas notei que a correnteza tornava impossível a travessia. Hoje, com ela aqui, não posso simplesmente deixá-la. Não sei se está viva, muito embora tenha ouvido ou imaginado murmúrios saindo de sua boca.

     Honestamente, tudo isso parece tão surreal, mas sei que eles estão me observando, e se acham — mesmo que por um segundo — que eu não v

Dia

     A chuva voltou hoje. Sempre volta.

     Chegou gente nova.

     Espero que ele se sinta em casa.

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©2022 por Dżejk Obleszczuk

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