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Perda de Sinal às 03:17 A.M.

Vejo-me obrigado, por mais uma noite, a sair de casa. As vozes já não param de sussurrar nos meus ouvidos, e, diante do silêncio do meu quarto, o vazio infame dos meus pensamentos parece tomar vida — crescendo diante dos meus próprios olhos. Mal posso reconhecer os posters que um dia pendurei nas paredes do meu quarto, ou mesmo o tic-tac periódico do que um dia fora meu relógio de parede favorito. Aquela casa não é para mim.

 

Nunca foi.

 

O clima está ameno aqui fora. Nem tão quente a ponto de aguardar os paramédicos em minha banheira; nem tão frio a ponto das minhas mãos endurecerem antes dos comprimidos fazerem efeito. Apenas a suave brisa primaveril que anuncia o começo de mais um dia. 

 

É engraçado como o mundo parece desacelerar na madrugada. Pensei muito nisso durante minhas noites em claro naquele quarto. Gostava de contar as silhuetas dos carros que atravessavam a minha janela enquanto tentava, sem sucesso, afastar todos aqueles pensamentos madrugada adentro. Uma única vez esse número foi superior a cinco… De qualquer forma, é divertido parar para refletir conscientemente sobre tudo aquilo que um dia transformou esse bairro no meu lar: do buraco na cerca da escola à praça no fim da rua. 

 

Parado em frente ao balanço, sinto um leve desconforto ao pensar na última vez que o usei. As correntes ainda estavam intactas e meu corpo cabia perfeitamente no carrossel. Não sei ao certo quando foi a última vez que sentei na quadra para brincar com areia ou mesmo do dia que voltei chorando para casa depois de ter me machucado num escorregador que nem mesmo o tempo foi páreo para sua permanência.

 

Meus pais nunca me deixaram ficar fora de casa durante a noite. Havia um toque de recolher extra oficial que se iniciava após os últimos raios de Sol se esconderem atrás das colinas do horizonte, e muito embora já tenha esticado minha permanência vez ou outra, o resultado nunca me foi agradável. Às vezes eu preferia ser tomado pela angústia da solidão sobre as minhas lágrimas do que ouvir minha mãe vociferar sobre os perigos noturnos, mas isso não era um problema quando, tão inocentemente, meus pais caíam no sono. 

 

Não é como se eu tivesse um cronograma de caminhada já estipulado, mas sempre que o fardo ficava muito pesado para carregar, eu costumava aceitar a companhia da Lua e caminhar até onde ela pudesse me levar. Às vezes eu traçava um caminho em minha mente, em outras eu andava até vencê-la pela exaustão física. 

 

Nessa noite, porém, quero apenas me sentir presente.

 

Ouvi alguns cachorros latindo cerca de dois quarteirões à frente. Caminhei a passos lentos enquanto absorvia a paisagem. As casas não eram as protagonistas — ainda que algumas eram de fato muito bonitas —, mas o que de fato despertou meu interesse foram os elementos que as tornam únicas. Muito embora eu não tivesse contato com a maioria dos meus vizinhos, eu poderia adivinhar aqueles que gostavam de futebol, carros antigos, os que tinham filhos pequenos ou mesmo os que praticavam algum tipo de esporte aquático. Por alguns segundos eu me perguntei como é a varanda dos meus pais, dando espaço a uma solitária lágrima que foi extinta antes mesmo que pudesse chegar a metade do meu rosto. Isso não importava mais.

 

Parei sob a luz de um poste que piscava num ritmo incomum. O som de seus componentes elétricos também me causavam uma certa agonia: um zumbido que morria sempre que a luz se apagava. Não havia padrão ali, tampouco beleza, então eu me sentei e passei um tempo observando os cachorros brincarem no quintal da esquina. Eram dois que se bastavam, ainda que um — talvez filhote — tivesse claramente mais energia e disposição que o outro. 

 

Não sei ao certo quanto tempo fiquei ali sentado. Abraçado em meus joelhos, vi as brincadeiras se transformarem numa leve briga e então cessarem no calor do aconchego. Talvez tenha parado por cinco minutos, talvez por cinquenta… Não conseguiria determinar com exatidão, mas um ruído metálico e distante me arrancou do transe ao ver um dos cachorros ficar em alerta e rosnando para o vento. Até mesmo a luz do poste em que me abriguei buscou repouso pouco antes de eu me levantar. Já estava na hora de continuar. 

 

Uma das casas que cruzei me chamou atenção. Não por sua arquitetura, mas por um único cômodo iluminado naquele horário. Pensei que pudesse ser alguém que pegou no sono enquanto assistia televisão, mas vez ou outra eu ouvia risadas saindo daquela janela. Nunca tive a oportunidade de conhecer a pessoa que mora ali, e quisera eu bater na porta e pedir para entrar. Talvez riríamos do mesmo programa, talvez nos fizéssemos companhia até o meu horário de permanência. Eu poderia lhe mostrar uma receita de pipoca que aprendi e a pessoa poderia me contar sobre o que de mais importante ela tem nesse mundo.

 

Mas tudo isso seria apenas um talvez...

 

Talvez eu tivesse batido na porta...

Talvez eu tivesse mais tempo para me permitir...

E apenas talvez eu não tivesse passado os últimos vinte minutos pensando no que poderíamos ter vivido.

 

Os arredores da minha cidade sempre me trouxeram um sentimento de paz. Lembro de explorar um pouco com meus amigos quando criança. Não que tivesse muito para fazer, mas tudo parecia infinito dentro dos limites de nossas imaginações. Minha mãe, por outro lado, nunca gostou que eu viesse para cá — dizia que era muito deserto, e de fato era —, mas ela não entenderia a beleza de ver cada uma das luzes das casas se tornarem pontos. De observar a imensidão da cidade como se estivesse na beira de uma praia vendo as ondas quebrarem.

 

Sobre aquelas estrelas, eu dei o meu primeiro beijo. Além daqueles arbustos, foi onde eu provei álcool pela primeira vez e, seguindo os fios de alta tensão morro abaixo, foi onde tive meu coração partido antes mesmo de saber o que significava “amar”. As árvores eram testemunhas das histórias daquela cidade. Só elas puderam me abraçar e dizer que me entendiam quando ninguém mais era capaz de tentar. Ali eu me sentia em casa. 

 

Longe de tudo e longe de todos…

 

Começou a chover — sinto pelo cheiro da terra molhada —, mas eu não sinto as gotas caindo em minha pele. Fecho meus olhos e tento lembrar do meu nome, mas nada surge, apenas um som abafado. Uma palavra qualquer. Não sei mais se sou alguém, ou só a sombra do que um dia pensei ser.

 

Não dói, só parece desligar. Como quando a televisão sai do ar e tudo que lhe resta é aquela estática branca que ninguém assiste; como quando você abre a boca para pedir ajuda, mas só sai silêncio; ou mesmo quando o céu desaba, mas ninguém percebe.

 

Vejo luzes e sinto algo me puxar, mas não pra cima.

 

Para fora.

 

Como se eu fosse expulso de tudo. 

 

Então tudo some.

 

Tudo. 

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©2022 por Dżejk Obleszczuk

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