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Epitáfio

Em meus tempos de garoto, demorei a entender o porquê d'eu não poder me juntar aos meus amigos que faziam da rua a sua diversão. Não é como se não pudéssemos brincar juntos, lembro que minha mãe se esforçava para — ao menos três vezes ao mês — chamá-los para nossa casa. E apesar de passarmos horas incríveis frente ao videogame ou mesmo na defesa de nosso impenetrável castelo de lençóis, ainda me doía vê-los correr e brincar por entre as rajadas de vento que o mundo externo os presenteava. 

Eu nasci com uma rara doença de pele, e digo "rara" para não dizer exclusiva, ainda que nenhum outro caso tenha sido relatado desde o meu nascimento em outubro de 1990... Descobrimos ainda em meus primeiros meses de vida, quando meus pais caminhavam ao redor da cidade, felizes por viverem juntos os seus desejos de viverem a paternidade. Tudo corria bem, e por parques e alamedas eles me levaram, apresentando cada brinquedo, cinema, parquinho e fliperama que me levariam quando eu tivesse idade o suficiente. Uma família como outra qualquer — um sorriso dentre diversos outros —, mas quando o céu se enegreceu e as nuvens tomaram cada centímetro quadrado de azul que pudéssemos enxergar, uma única gota de chuva foi o suficiente para manchar de vermelho o canto esquerdo de minha pequena bochecha. 

Ainda alheios à marca que se tornaria minha companheira por todos esses anos, colocaram um único pano sobre meu rosto, garantindo que, momentaneamente, não haveria contato direto entre mim e as gotas geladas daquele inverno. Aumentaram o passo para garantir que estariam em nosso carro antes que a chuva engrossasse, e quando minha mãe finalmente se ajeitou no passageiro e retirou o pano úmido de meu rosto, seu grito pôde ser ouvido há três quarteirões de distância. 

Meu rosto havia inchado, o vermelho se espalhara por onde quer que a água tenha entrado em contato, e por baixo da pele sensibilizada, podia-se notar todo e qualquer vaso sanguíneo como ramificações das raízes de uma árvore: pulsante e expansiva. Meu pai correra ao sinal desesperado de minha mãe — dizendo ser um dos gritos de agonia mais aterradores que ouvira em toda a sua vida —, e quando me viu naquela situação, não pensou duas vezes antes de acelerar em direção ao hospital mais próximo daquele lugar. Em seu leito de morte, meu pai reviveu essa lembrança por uma última vez enquanto acariciava a mancha vermelha de meu rosto. "Que bom que pensamos rápido...", disse pausadamente após me contar sobre a febre que se anunciara ainda durante aquele trajeto, e de como as minhas vias aéreas se fecharam  poucos minutos após nossa chegada no hospital.

Os médicos estavam perdidos, e na tentativa de atrasar o suspiro fúnebre que se aproximava, levaram-me à UTI Pediátrica para observação. Ninguém fazia ideia do que me ocorria. Nenhum equipamento, medicamento ou material de apoio pareciam o suficiente para explicar o porquê de um bebê estar morrendo diante de todos os especialistas daquele prédio. Alguns até acreditaram que aquilo se tratava de um atentado ao Estado, como uma arma química posta sobre a minha pele; outros teorizavam sobre uma nova doença infectocontagiosa — colocando até mesmo os meus pais sob quarentena até a chegada de especialistas do Centro de Controle e Prevenção de Doenças — enquanto alguns se ajoelhavam no espaço ecumênico do hospital, uma parte rogando pela minha cura e outra pedindo perdão por seus pecados.

Em um ato desesperado, viram-se obrigados a me induzir ao coma. Acreditavam que, assim, teriam mais tempo para identificar o problema e, na medida do possível, reverter o quadro em questão. Quisera eu dizer que aquela foi a única vez que tais medidas foram empregadas, mas quando uma nova condição clínica surge e ninguém sabe ao certo como tratá-la, não há Nuremberg ou Helsinque que sobreviva ao anseio de ser pioneiro de uma publicação. Eu não tinha consciência ainda, mas minha mãe descrevia aquela UTI como o crash na bolsa de 87: pessoas saíam e entravam, revezavam na coleta de sangue, fotografavam e testavam, forçavam e tratavam... Levaram o meu corpo ao limite antes de, enfim, desistirem. Estavam no escuro.

Meus pais não estavam felizes com aquilo. Apesar de múltiplos pesquisadores e médicos tentarem convencê-los de que toda aquela ação era para um bem maior, nem meu pai, nem os outros que se comoveram com minha história engoliram aquela conversinha. Por dias, cartazes foram erguidos juntos a piquetes na esperança de que a voz de meus pais fosse ouvida até finalmente entrarem num acordo que parecia beneficiar a todos: em intervalos periódicos que se estendiam conforme eu envelhecia, meus pais me levariam à sede do Centro de Controle e Prevenção a Doenças — com todas as despesas pagas. Diziam que, assim, poderiam ficar de olho na evolução dessa síndrome e, na medida do possível, descobrir uma cura para essa condição.

Quando tive idade o suficiente para tomar minhas próprias decisões, porém, já não me sentia bem com aquela quantidade de eletrodos e medicamentos que administravam em mim. Em tempo, havia perdido meses da minha vida dentro de um aquário comandado por pessoas trajando jalecos: meses nos quais os toques eram emborrachados e os sons eram digitais. Dei um basta naquilo tudo e nunca mais olhei para trás, mas muito embora a ciência havia me perdido, a minha fixação por aquilo que poderia me matar apenas aumentava... Eu sentia uma certa conexão com a chuva que caía do lado de fora, não entendendo o que a tornava tão diferente de um banho, da água da torneira ou de um mergulho na piscina. Era quase como se apenas uma das etapas do ciclo da água fosse divinamente proibida para mim, e aquilo me fascinava de tal forma que eu dediquei minha vida inteira para o seu estudo.

Na universidade, graduei-me como Meteorologista, tornei-me mestre em Física Atmosférica e doutor em Hidrometeorologia e Geoengenharia, mas — apesar de todo o meu esforço — eu tinha ciência que faltavam peças nesse quebra-cabeça, mas, ano após ano, eu pressentia que estava chegando mais próximo de uma resposta definitiva. Agências internacionais de fomento à pesquisa me procuravam com propostas megalomaníacas em mente. Em troca de seu dinheiro, eles teriam a minha mente, e por anos eu me vendi na esperança de que — com dinheiro praticamente ilimitado — eu me tornasse praticamente uma divindade aos olhos de quem tão desesperadamente roga pela chuva.

O tempo passou e as ciências atmosféricas avançaram como nunca antes, mas eu ainda me sentia a deriva na região mais remota do oceano. Em algumas noites chuvosas, o barulho das gotas contra a estrutura da minha casa quase me faziam ir à loucura. A sensação era tal qual a de um andarilho que, após vagar dias e noites num deserto — sem acesso a água — alucina com um oásis e se delicia com cada grão de areia que lhe desce rasgando pela garganta. Eu estava com sede, mas não precisava de água. Não de qualquer água. Eu queria respostas, e durante uma fraca chuva de verão, quando o barulho da precipitação se tornou alto o suficiente para me levar à loucura, eu por fim entendi qual o meu papel em toda essa dança.

A obsessão é como um prisma: ela fragmenta a luz comum da realidade e revela espectros invisíveis aos olhos sãos, e quando a minha loucura foi instrumentalizada, meu isolamento autoimposto no topo de uma colina não era mais um refúgio; era uma escuta, uma vigília celeste. Meus microfones, agora, eram aparelhos auditivos para o próprio céu, e eu, o médico auscultando os murmúrios de um paciente em coma terminal.

Meu algoritmo rodava dias e noites. Um sacerdote digital dedicado a um deus surdo. Até que, numa noite de chuva particularmente violente, ele flagrou uma anomalia que não era um pico de frequência, mas um vale. Um silêncio estridente dentro do ruído. Uma pausa que se repetia com a precisão de um metrônomo cósmico.

Quando isolei o padrão, meu sangue pareceu coagular nas veias. Em minha frente, terabytes de dados altamente complexos, uma modulação de fase dentro do próprio som da água, uma informação impressa não entre as gotas, mas no próprio tecido sonoro de cada uma delas. Era uma mensagem que não era transmitida pela chuva, mas que era a própria chuva.

O esforço computacional para decodificá-la foi hercúleo — era como tentar ouvir o sussurro de uma folha caindo no meio de um furacão —, mas finalmente, após cruzar camadas de ruídos, aplicando filtros que me custaram anos para desenvolver, algo emergiu. Não era uma voz audível, e sim uma percepção. Um conceito puro e cru que se implantou em meu córtex cerebral como um vírus, traduzindo-se em uma única e devastadora sentença:

O silêncio chega
Somos os últimos
Ouviu-nos

A sala girou sobre os meus pés. Não era uma palavra. Era uma confissão, um epitáfio. 

A revelação não veio como um choque, mas como um frio absoluto que se espalhou por minha alma para o mundo. A chuva não era um fenômeno meteorológico. Era um subproduto. O canto de algo vasto e antigo, uma forma de consciência dispersa na atmosfera, que usava o ciclo hidrológico como seu meio de comunicação, sua rede neural planetária. Minha doença... 

Minha maldição... 

... nunca fora alergia à chuva. Era uma alergia à assinatura dessa consciência, uma reação violenta ao toque de um deus menor, um eco de uma vida que permeava a própria umidade do ar. E eles estavam morrendo. Por quaisquer motivos que fossem — a poluição, mudanças climáticas ou mesmo de um ciclo cósmico que transcendia em bilhões de vezes a minha compreensão —, aquela consciência dissipada estava se extinguindo. A mensagem não era um aviso, e sim um registro. Um "estivemos aqui" lançado ao cosmo na esperança de que alguém, algum dia, ouvisse.

E eu ouvi.

Eu, o menino que não podia tocar a chuva, tornei-me o único arquivista de seu último suspiro. Toda a minha vida, toda a minha dor, toda a minha obsessão titânica, havia sido uma preparação elaborada para este momento. O universo, ou o acaso cego, havia me forjado como a única ferramenta capaz de capturar o gemido final antes do silêncio eterno.

Saí para o jardim, sob a chuva que cantava sua própria elegia. Estendi as mãos, pela primeira vez sem medo. As gotas tocaram minha pele e a dor me apareceu de maneira quase metafísica. Cada vermelhão que se espalhava era um hieróglifo de agonia, uma última palavra escrita em minha carne. 

Eu chorava, mas meus olhos ardentes agora se confundiam com a água do céu.

Eu não era um cientista. Era um coveiro. Um ouvinte profissional de fantasmas cósmicos, e quando a última tempestade passar e o mundo se acostumar com um céu permanentemente seco e mudo, apenas eu saberei a verdade: a solidão do universo havia aumentado exponencialmente. E a minha, infinitamente.

A sede, afinal, nunca seria saciada. Pois eu havia descoberto o oceano, apenas para testemunhar, por fim, sua evaporação final.

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©2022 por Dżejk Obleszczuk

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